segunda-feira, 2 de março de 2009

Para se perder pelas Serras do Sul

Cachoeira em Cambará (RS)


Até ontem, minha intenção era "assassinar" este blog. Gosto do assunto, não posso culpar o tempo (ando bem desocupada) e ao vou à Porto no mínimo uma vez por mês. Mas às vezes sinto que caio no tal lugar-comum, do qual sempre quis fugir. Uma das armadilhas (e não poderia ser de outra forma, já que os assuntos deste blog são duas capitais) é a necessidade de dar dicas para sair, comer, passear e afins. E tenho que admitir que a minha fase boêmia é passado.


Não gosto de revivals. Estou cada vez mais enfurnada em casa e quando resolvo sair, definitivamente o meu gosto pelos lugares não corresponde ao da maioria. Em certo momento, senti que não havia mais nada a dizer.


Mas mudei de idéia. Vou postar aqui quando sentir vontade, deixar a coisa fluir, se é que vai. Não prometo nada. Não quero me sentir obrigada a postar. Mas não vou desistir do blog por completo. Se matá-lo, como vai ser quando quiser escrever?


Aproveito para começar o ano (depois do Carnaval né) com um texto lindíssimo que eu descobri, pasmem, em um desses guias de turismo. Ele pertence ao jornalista e fotógrafo Marcos Sá Correa sobre as serras do sul do país Gostei tanto que tomei a liberdade de reproduzir aqui (como esse blog não tem lá tantos cliques, acho que ninguém vai me processar).


Divirtam-se:


Para se Perder Pelas Serras do Sul

Esqueça a linha reta. Da praia à serra, o caminho mais curto entre dois pontos é cheio de curvas, pelo menos naquele trecho da costa brasileira onde o planalto dos Campos Gerais cai sobre a planície litorânea como uma cortina de basalto, rasgada por cânions e cerzida por estradas que, séculos antes do teodolito, foram traçadas no precipício a casco de mula. Pelo caminho dos tropeiros, numa arrancada de pouco mais de cem quilômetros, é possível juntar no mesmo dia de verão a manhã do banho de mar à noite de lareira acesa, o peixe do almoço à polenta do jantar, a moda volúvel do balneário ao tenaz figurino do peão que ainda usa bombacha, chapéu e lenço no pescoço para trabalhar, como se estivesse pronto para fazer o papel de gaúcho na televisão.

São cento e poucos quilômetros de escalada, mil e tantos metros de altitude e pelo menos três estradas para subir a serra do Mar num estilo que no resto do Brasil está ficando cada vez mais raro. Pouco importa se em Santa Catarina o turista escolheu a estrada do Rio do Rastro, que pela lisura do piso e a iluminação noturna parece uma rodovia alpina, preferiu a variante do Corvo Branco, que é ainda mais cenográfica e oferece nos trechos de terra um convite implícito à bravura dos carros de aluguel, ou embicou no Rio Grande do Sul pelo caminho do Faxinal, que na estação das chuvas se transforma numa pista de provas para veículo com tração nas quatro rodas.

Em todas elas, ele passará por um curso rápido de afabilidade ao volante, que parece um vestibular para os padrões de etiqueta que o aguardam lá em cima.
Ali, quando um caminhão entala numa curva fechada, os outros carros recuam para facilitar a manobra. As ultrapassagens são negociadas com rapapés quase diplomáticos. E todo acostamento mais amplo é um convite tácito para estacionar num mirante onde os sentidos geralmente misturam o som de uma cachoeira próxima e a visão do mar distante.


Não precisava de mais nada, mas é só o começo, O planalto, nessa região, arquivou na borda de seus cânions a paisagem que, no século XIX, o naturalista Auguste de Saint-Hilaire classificou como amostra do paraíso terrestre. O que ele tinha diante dos olhos na ocasião era a floresta de araucária, um tipo tão nobre de mata nativa que vem coroado por uma relíquia amadurecida por 250 milhões de anos. A araucária vive cercada de campos floridos e de mal-entendidos. Nascida no tempo em que os dinossauros ainda caminhavam pelo planeta, resistiu a mudanças climáticas e convulsões geológicas para cair nos dentes das serrarias, que da noite para o dia transformaram os estados sulinos em vorazes exportadores de madeira no século XX. Ela quase não resistiu à febre das madeireiras. Sob ataque, mudou de aparência e de companhia.
Deixou de formar extensas florestas para se isolar em beiras de cerca e fundos de pasto. Compões tão bem o cenário que dá a impressão de ter sido sempre assim. Trata-se de uma árvore genuinamente nacional, mas, como se dá bem com o frio e não pode faltar nos cartões-postais que promovem os invernos nevados, acaba passando por mais um sinal de que todo aquele território é um filé da Europa exertado no dorso da serra gaúcha.

Os turistas que vão para lá atrás dessa conversa não sabem o que as agências de viagem estão escondendo. Nada contra o Natal-Luz de Gralmado, a Frühlingfest de Nova Petrópolis, o Mangiare di Polenta de Flores da Cunha, a Krönenthalfest de Vale Real, os morangos de Bom Princípio, as adegas da rota dos vinhedos de Bento Gonçalves, o Ritorno Alle Origini de Uruçanga, as missas dominicais rezadas em alemão – semana sim, outra não – de São Vendelino e tudo o que a colonização alemã, italiana, polonesa e ucraniana trouxeram para criar à sua volta, com muito suor e rega-bofe, um dos melhores destinos turísticos do país. Mas não custa lembrar que a região também é um lugar muito recomendável para quem precisa matar a saudade do Brasil.

É um Brasil que nem sempre se encontra fora dali. Um Brasil arrumado, cordial e típico, o tal “país eminentemente agrícola” que ainda figurava nos livros escolares não faz tanto tempo assim. Nele, municípios inteiros se confundem com parques nacionais; os pastos naturais, pisados pelo gado desde o século XVI, ainda florescem. E conservam nomes rústicos como atestados de sua origem rural. Em São José dos Ausentes, a maior atração turística sem chama Cachoeirão dos Rodrigues. Nesses recantos, o mapa rodoviário pode ficar esquecido no porta-luvas, porque se perder é o melhor caminho para chegar, por estradas vicinais que não têm placa nem nome, a vales laboriosamente cultivados, morros forrados por uma capa de floresta, rodas d´água, rios limpos, gado cercado, galinhas soltas e casas de janelas escancaradas. Errar ali não tem a menor importância. Os lugares quase sempre se parecem. E isso quer dizer muita coisa numa época que o menor desvio de rota, em outros estados, leva a encontros acidentais com voçorocas e favelas.

Há menos hotéis nesse lado da serra do que pousadas, geralmente funcionando em fazendas. Algumas são históricas. Todas são produtivas. Costumam ser decoradas com os móveis da família e entopem os telheiros do lado de fora com ferramentas agrícolas que todo decorador gostaria de pendurar na sala. Os travesseiros recendem a roupa quarada ao sol. Dormindo na casa principal, como é de praxe, o hóspede tende a ser acordado, com o dia ainda escuro, pelo cheiro do pão que assa na cozinha. O bom-dia do anfitrião vem com a cuia de chimarrão na mão estendida. Na mesa coletiva, que em geral se aninha perto do fofo, os pratos são feitos com receitas imutáveis e produtos caseiros, mas têm o tempero da fumaça que saiu do fogão de lenha e um gosto que mexe ao mesmo tempo com o paladar e a memória. A comida não poderia ser mais brasileira. Tão brasileira que cabe na definição universal que o milanês Gianni Brera deu à culinária tradicional dos montanheses no Norte da Itália: “Coisas pobres, preparadas com uma civilidade que se aproxima do refinamento”. Parece simples, mas tente encontrá-la assim, sem mais nem menos, zanzando por outros pedaços do Brasil.

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